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terça-feira, 23 de março de 2021

Destempero Selado

Volta e meia é isto por aqui, neste rincão atlântico. Recentes alterações legislativas parece adaptarem-se, como luvas de brancura duvidosa a negócios que circulam sempre muito próximos do poder. Desta vez é a EDP. Perdão, quando se contam milhões é muitas vezes a EDP. Claro que é mais folgado distribuir milhões do que quantias de pouca monta. Objecto, claro está, são as barragens, ou as seis barragens do rio Douro " vendidas aos Franceses da Engie". A frase revela de imediato como é fácil ludibriar pacóvios. As barragens são propriedade do Estado e não da EDP. A EDP é apenas concessionária. O que não é pouco. Em todo o caso não se vende o direito da concessão. Sendo uma concessão pública, por maioria de razão. Cede-se o direito de concessão por um determinado período. Onerosamente, está claro. Muito onerosamente, ou seja, por muito dinheiro. Bem mais de 2 mil milhões, ao que consta. Neste caso, a cedência terá sido pelo período durante o qual a EDP poderia exercer o seu direito, ou seja, a exploração das barragens. A cessão dessa concessão está sujeita a imposto de selo, em Portugal. No caso seriam mais de cem milhões de euros à taxa de 5% sobre o valor global da cessão. Com uma ressonãncia estridente e ignorante como é bom de ver, acabo de ouvir este destempero: legalmente está tudo bem. O que esta manhã ouvi numa emissora de rádio é só o eco daquilo que oiço há vários dias em meios diversos de comunicação social. É claro que não é nada legal. Mesmo que a alteração legislativa não tivesse em mira este negócio, ou ainda que tivesse -é igual ao litro - não seria legal, ou melhor, não  seria juridicamente correcto ou aceitável o malfazejo negócio. A EDP terá criado uma sociedade a quem trespassou a concessão. Era uma sociedade anónima. Detida pela  madre EDP. A EDP pretende situar esta operação na letra do artigo 60º do Estatuto dos Benefícios Biscais, na redacção dada pela Lei 2/2020 de 31 de Março ( a tal de objectivos suspeitos). Concretamente na alínea b) do seu nº 1 que trata da isenção do Imposto de selo. Até um cego poderá ver que este truque não é uma operação de reestruturação, por mais amplo e ambíguo que seja o conceito na letra do mencionado preceito normativo. Mas há mais. A seguir a EDP vendeu - aqui sim, com propriedade - as acções de que era titular ao grupo Francês Engie, concretamente, a uma empresa do mesmo grupo denominada Águas Profundas. Vejam bem, O nome diz tudo, Vá lá. Quase tudo. Parece um nome de uma empresa na hora. Os mais experientes nestas lides sabem que a criatividade do autor ou autores "dessa coisa" têm uma imaginação delirante. Mas tem graça. Enfim, como a ENGIE não queria a bastarda da EDP para nada, extinguiu-a, logo de seguida. Tudo é fácil no reino lusitano de descuidados legisladores mas de cuidados interesses. Ponderando a história, que nem é assim tão burilada, é evidente que, com ou sem benefícios fiscais, a EDP abusou do instituto da pessoa jurídica ( criação de uma sociedade) com o propósito de conseguir benefícios. Logo a EDP tem de pagar o imposto devido e muito mais porque o abuso da pessoa jurídica pode ser punível até criminalmente. O abuso da pessoa jurídica tem hoje consagração em variadíssimos institutos e normas do ordenamento jurídico português, designadamente no  de natureza comercial.
Já agora: sabem como nasceu este instituto? Na Alemanha logo a seguir à II Guerra Mundial. O III Reich escudou-se em empresas criadas propositadamente para adquirir bens no mercado. Quando o III Reich teve o destino que sabemos, os credores quiseram, naturalmente, obter os seus créditos do Estado visto que essas suas empresas se extinguiram. Como é bom de ver. O Estado regateou. Mas os Tribunais alemães, com base numa norma pouco clara do regime das sociedades anónimas condenou o Estado a pagar ou a indemnizar os credores. Porquê? Porque ao criar essas sociedades o Estado alemão abusara do instituto pessoa jurídica. Isto é jurisprudência, não é? Tão boa e tão rigorosa que convenceu mesmo os legisladores mais cautelosamente empedernidos. Será que a EDP vai ficar impune, como é vulgar em Portugal?  Cheira-me que na Alemanha não ficaria!
 

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