A
BANHOS *
"Uma das coisas a que temos de nos habituar
enquanto cidadãos portugueses, é a assistir impotentes à utilização abusiva do
espaço público por algumas entidades. Se os sucessivos cortes de vias públicas
sem aviso prévio causam tantos transtornos aos que desejam circular livremente
na cidade de Lisboa, imaginem só o que a praia artificial mais badalada do país
fará aos moradores da freguesia de Santo António, em Lisboa.
No outrora desconhecido do grande público
Jardim do Torel, o lago setecentista transformado em mar era até há bem pouco
tempo um lago artificial cheio de verdete no meio de um terreiro inóspito, num
piso urbano entre escadas, subidas, descidas e rampas, massacrado pelo sol que
ali incide durante os longos dias de Verão. O miradouro do jardim também
não tinha nenhum bar da moda com DJs, muito menos rating no foursquare.
O respeito não não oficial era tal que até a TimeOut se abstinha de o incluir
em muitas das suas listagens de sítios cool
e in e hip. Era apenas um lago num jardim entre escadas, subidas,
descidas e rampas. Tal como todas as pérolas, o Jardim do Torel era um daqueles
lugares portugueses absolutamente incríveis, mais ou menos sagrados e
impossíveis de descobrir.
Até que alguém se lembrou que aquilo de que
Lisboa precisava mesmo em Agosto era de mais uma praia urbana, para juntar à da
Ribeira das Naus.
No caso de Lisboa, uma cidade à beira mar
plantada, a necessidade real de uma praia dentro do perímetro urbano é quase
nula, uma vez que a rede de transportes públicos da qual nos queixamos todo o
ano até é capaz de levar o cidadão comum até uma praia com alguma rapidez e
eficácia em qualquer altura do ano. Caso os transportes públicos não façam as
delícias dos banhistas, existem sempre os carros próprios e os carros dos amigos,
mais as motas próprias e as motas dos amigos. Para quem vive em Lisboa e até
mesmo na sua área metropolitana, chegar a uma praia de verdade, é canja.
No início pensei que fosse uma brincadeira
de gosto duvidoso, esta da praia do Torel. Depois pensei que fosse uma coisa
bem feita e gira, género iniciativa pioneira para que se fomente a limpeza de
todas as fontes e lagos da cidade, para que Lisboa seja ainda mais maravilhosa
aos olhos dos turistas que passeiam esbaforidos colina acima, colina abaixo, porque
se Lisboa fosse uma cidade do interior da Europa, os banhos nas fontes e os
dias quentes passados nas suas relvas circundantes seriam perfeitamente
naturais, dada a impossibilidade geográfica que seria chegar a uma praia.
Agora... Em Lisboa? Precisamente em
Lisboa?!?
Um par de dias após a inauguração desta
maravilha, e farta de ver as placas de um cor de rosa muito familiar que
indicam a praia - não vá a gente perder-se - decidi chegar a casa pelo caminho
do Jardim do Torel.
Enquanto subia as escadas de um dos acessos
ao jardim, e ciente que já estava da existência da praia e da sua lotação
dentro de água, mesmo com a barulheira que se fazia ouvir, pensei por momentos
que me iriam surgir no horizonte vinte e cinco esplendorosas Anitas Ekbergs
para vinte e cinco galantes Marcellos Mastroianis.
Só que não: à chegada ao cimo das escadas, a
visão foi outra.
A praia é como todas as praias: grátis. Tem
uma capacidade máxima dentro de água de, dizem, cinquenta pessoas. Tem sempre
bandeira verde e conta com a presença de um nadador salvador certificado.
Também tem um bar de apoio plantado numa área outrora “morta” do jardim, bem ao
estilo português, que é como quem diz um quiosque de festival de Verão
disponibilizado por uma marca de bebidas.
Contemplado todo o cenário, achei que
cinquenta pessoas dentro de uma fonte em Lisboa devia ser associação perigosa e
percebi que o Fellini por detrás desta banhada era outro. Sem conseguir
abrandar a passada por um único segundo para contemplar toda aquela mise en scène, a lotação pareceu-me
quase esgotada por um mar de gente satisfeita. Daquele mar emergia um calmeirão
molhado, que de um só movimento rápido e viril se sentou no rebordo da fonte
para depois projectar um escarro igualmente perene para dentro da água prometida.
Mesmo a talho de foice, já cá em cima perto
de mais um vendedor ambulante, veio-me à cabeça o “brincar aos pobrezinhos” do
ano passado. Afinal de contas, se os Espírito Santo têm a Herdade da Comporta,
porque é que os Millennium não podem ter o Jardim Torel?"
·
Joana
Barrios
Nota; o artigo transcrito é da autoria da minha filha, Joana Barrios, que mantém uma coluna na revista do semanário Sol, a Tabú. Este foi publicado na última quinta-feira. Já não é a primeira vez que lhe peço autorização para a "republicar" neste blog. Como alguns concordarão - e outros nem por isso - é um orgulho ter uma filha lúcida, que escreve bem e com humor.
Para além disso, talvez o seu artigo me tenha tirado da preguicite, incitando-me a escrever os poltriqueiros.
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