Cucos e Marionetas
( Crónicas de um país adiado )
Os Cucos
1. O cuco, como é sabido, é uma ave migratória. Ave de arribação, como o povo gosta de dizer. E são conhecidos pelas gentes do mundo inteiro. Fiquemo-nos pela Europa. Os Ingleses chamam-lhe cuckoo, os Franceses, coucou, os Italianos cucù, e até no arrevezado alemão esta sedutora ave é tratada por kuckuck.
Trata-se de um termo foneticamente universal, como pode verificar-se. Podemos nomear os cucos em qualquer parte, sem grande esforço gutural e fazendo figura de poliglotas. Ou, pelo menos, de cidadãos da Europa, para ser politicamente correcto, como agora é dever elementar de todos nós. Queiramos ou não. Principalmente por cuculídea conveniência. Mas não só.
Também por isso, certamente, os cucos têm sido objecto da atenção de vários ramos do conhecimento humano. Os filólogos, desde logo, têm discutido abundantemente a origem do termo. Para não fugir à regra, houve quem defendesse que o nome deriva do latim cuculu. E muitos basearam-se num argumento de autoridade, citando as Etymologiae de S. Isidoro de Sevilha. Sendo o Santo, naturalmente, letrado em coisas latinas, nem poderíamos levar-lhe a mal o facto de ter puxado a brasa à sua sardinha. Mas parece que não. O nosso José Pedro Machado, no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, desmonta o erro desses autores categoricamente, como sempre faz. Percorreu pacientemente as Etymologiae e o que encontrou escrito pelo Santo, ( em XII, 7 ) foi o seguinte passo que vale a pena citar: “Tucos, quos Hispani cuculos vocat, a propria voce constat nominatos”.
Ficamos assim a saber que os Romanos não chamavam à nossa ave cuco, mas sim tuco, o que não deixa de ser relevante para o nosso escopo, como veremos.
Sabemos também que a ave já no sec. VI d.c., e certamente muitos séculos antes, nos visitava regularmente. Considerando, está bom de ver, que S. Isidoro nos incluía nos Hispani ou Hespanhóis. A ninguém ocorreria o diabólico pensamento deste pequeno povo ser beatificamente marginalizado pelo Bispo a quem se deve o organização da Santa Madre Igreja na península Ibérica. Por isso podemos afirmar peremptoriamente que, no santificado pensamento de Isidoro, estávamos à data incluídos e bem incluídos, nos Hespanhóis.
Nem outra coisa seria de esperar do Santo, se pensarmos bem. Mas muitos outros autores têm insistido com grande propriedade nesta pertinência histórica. Por mimetismo santificado, ou talvez não, também a saudosa, imaginativa e documentada Natália Correia provou à saciedade que Mátria é um termo muito mais significativo e significante do que Pátria, nisto se aproximando da língua germânica e ainda que, ao fim e ao resto, todos somos Hespanhóis. Foi um prognóstico certeiro e digno de realce, apesar de a memorável poetisa não ser economista nem, que saibamos, ter exibido as credenciais tão divinatórias quanto analíticas, características desse nobre e utilíssimo ramo do conhecimento. Referimo-nos à economia, é claro, e não à zoologia. A questão, a única questão relevante, estará em saber se os Castelhanos, para não falar das outras nacionalidades ibéricas, mantêm o sentimento fraternal de nos acolher na sua estirpe.
2. Mas voltemos ao nosso tema.
Poderemos ainda inferir do prolífero texto das Etymologiae, esperando não fazer uma interpretação abusiva, que o Santo privava mais com a aristocracia do que com a populaça. Argumentemos: tratar os cucos por cuculos parece-nos próprio de gente fina. O povo abomina palavras compridas e sons ondulantes. Gosta muito de ouvir, mas não se compromete definitivamente com tais pedantismos. Por isso temos para nós que o povo, já nesse tempo, chamava cucos aos cucos e que os membros da aristocracia e do clero, muitos também de origem migratória, preferiam o termo mais especioso de cuculos. Séculos mais tarde, a burguesia esclarecida, como é regra, procederia a outras corruptelas bem mais graves. Por exemplo, substituiu o termo parir por dar à luz, apesar de ainda não existir electricidade e dos ensinamentos dos autos de Gil Vicente, e passou a designar as mulheres casadas por esposas que foram como que uma espécie de meras prometidas, nos tempos romanos.
Ainda quanto aos ensinamentos de Santo Isidoro, podemos afirmar, por fim e sem margem para dúvidas, que os cucos têm origem onomatopaica. Isto é, o nome resulta do próprio som do cantar do cuco. Como o cócórócó do galo, o glúglú do perú, etc.
Menos segura é a origem do termo mamão, quer como adjectivo qualificativo, ou seja, aquele que mama muito, quer como substantivo, designando um fruto tropical por sugestão mórfica do belíssimo atributo feminino, segundo alguns, ou também resultante de sons indígenas da América latina, segundo outros. A relação com os cucos é puramente substantiva, nada tendo a ver com a linguística. Sempre se dirá, no entanto, que o substantivo serve também para os alentejanos, e não só, designarem os bezerros e os burros com um ano de idade. Mas burros é que estes mamões não são, como facilmente se colhe.
Mas nem só de linguística vivem os homens. E muito menos os cucos, apesar de terem criado o próprio nome, como acabámos de ver, limitando-se os humanos a designá-los por imitação. O que, valha a verdade, é uma designação tão legítima como qualquer outra.
Atendendo a uma classificação simples, mas já um pouco ultrapassada, a ornitologia diz-nos que os cucos pertencem à ordem das aves trepadoras, por oposição às palmípedes, pernaltas e aves de rapina.
Mas não se infira desta classificação que muitas características dos cucos não se observem também nos palmípedes, nos pernaltas e nos rapinantes. A cabeça pequena, as asas afiladas e a cauda comprida do cuculus canorus, entre outros, fazem mesmo lembrar as aves de rapina. Os ornitólogos falam também no voo do raptor que o cuco executa em Maio, mês do cio, por excelência, como sendo um voo lento e planado por oposição ao seu normal voo rápido e directo. Algumas semelhanças comportamentais e de plumagem têm os cucos com outras aves ditas limícolas, exactamente por frequentarem o lodo e os pauis. Abstraindo, por momentos, das exactidões zoológicas, é sabido que os cucos nacionais, apesar de não serem aves aquáticas, mergulham com frequência em todos os ambientes lodosos desde que daí retirem os benefícios pessoais que incessantemente prosseguem.
3. As aves trepadoras caracterizam-se por terem dois dedos voltados para trás e dois voltados para a frente. Por isso são também chamadas zigodáctilas, porque os homens cultos prezam muito tudo o que cheire ao mítico passado helenístico. O polegar dos cuculídeos e restantes trepadoras, diz-se, é reversível. Nos humanos, como é bem conhecido e experimentado, o polegar, porque se opõe aos restantes dedos, possibilita a apropriação. Em sentido figurado, obviamente. Como se constata, - e aqui não há que ter medo de francesismos - , a mencionada classificação é ainda correcta no que aos nossos cucos diz respeito. Faz todo o sentido, porque induz, de imediato, características e hábitos importantes desta ave que entre nós permanece e nos encanta entre os primeiros dias da Primevera e o pico do Verão. Diga-se, no entanto, que a partir de Junho, o cuco emudece ou melhor, ouve-se mais raramente. É a silly season, claro está. Também o s cucos, sobretudo os cucos, precisam de retemperar forças e ânimo.
Os nossos cucos, como é sabido, são particularmente dados ao jet set durante a época estival. Ouvem-se e avistam-se com frequência nas praias e nas festas algarvias e da linha de Cascais. Pelam-se pelas reportagens de todas as revistinhas ditas cor-de-rosa e sociais em actos agrupados de indispensável promoção pessoal. Enfim, é todo um ritual, mediano, repetitivo, quiçá ridículo e pouco imaginativo, mas sempre muito útil e eficaz. Como diria o poeta, só falar e ser falado é preciso. O resto é conversa. Mas até a conversa de travesseiro pode ser muito útil para os cucos, quando destinada a abrir portas mais esconsas e a preparar trajectos que se querem mais directos.
Assim era, no que às migrações respeita, para sermos mais precisos e de acordo com os livros e os melhores autores.
Porque, alguns cultores da nóvel ciência política e também da má língua, mas não da ornitologia, têm vindo a defender que alguns cucos estão a ganhar hábitos sedentários no nosso continente e ilhas adjacentes, ditas regiões autónomas. Dia a dia mais sedentários, os hábitos dos cucos. Uma vez perdido o império, evidentemente. Porque até lá a história nunca existiu, dizem os cucos. Os mencionados teóricos fundamentam a sua tese no facto, verificável é certo, de os nossos cucos terem um cantar e hábitos muito semelhantes, apesar das mudanças mais ou menos periódicas da correspondente plumagem. Que também não tem variado muito, valha a verdade. Citando um ditado antigo, entre o rosa e o laranja venha o diabo e escolha. São as cores que os cucos mais têm exibido, por conveniência, que não necessariamente as cores de origem ou as de convicção. Estas, na maioria dos casos, são perfeitamente neutras, admitindo que existam. Com algumas excentricidades. Imagine-se que há até fêmeas hepáticas, assim chamadas pelas manchas castanhas e avermelhadas que lhes dão uma aparência extravagante.
Na verdade, têm sido detectados a olho nú voos de cucos solitários ou em grupo e em diferentes períodos do ano, que percorrem o território em diagonal, inspeccionando com mestria os diferentes habitats nacionais e correspondentes recursos. De igual forma se vislumbram facilmente acções concertadas e outras medidas de efeito equivalente, entre cucos de distinta proveniência. Os cucos perdem com dificuldade os hábitos colhidos no poleiro. Por isso aprendem a transaccionar como ninguém, ou seja, como nenhuma outra ave. Trocam influências recíprocas com o objectivo de acautelar a retirada. Descobrem, em gremial conivência, outros pequenos habitats igualmente abundantes, onde se acoitam, livres de olhares porventura curiosos e de perniciosas divulgações. Considerando, embora, que todas as generalizações são perigosas e pouco verdadeiras, é possível afirmar-se que todos os habitats frequentados pelos cucos são recheados, directa ou indirectamente, pelas generosas contribuições da restante avifauna residente no país ou na Europa.
Enfim, é provável que alguma verdade haja na tendência dos cucos para a sedentarização. Mas sejamos justos. As condições ecológicas estão a mudar vertiginosamente. Ora, como é sabido, os cucos adaptam-se rapidamente às novas condições ambientais. É mesmo a sua característica dominante, como veremos: a enorme capacidade de adaptação.
4. Regressando aos ensinamentos da ornitologia, diz-se agora que a classificação anteriormente referida atendia apenas a características superficiais. Não deixando de insistir nas enormes dificuldades que há em classificar as aves, até pela escassez de fósseis, estes cientistas incluem hoje os cucos e os turacos na ordem dos cuculiformes. Sem tirar nem pôr. Os cucos deram o nome a uma ordem de aves. Pobres turacos. Apesar do colorido da sua plumagem e da sua poupa exuberante, têm de conformar-se com um nome alheio. De ordem. Porque continua a haver quem os nomeie por musofagídeos. Muito interessante, o termo. Esta fatalidade aconteceu também aos abutres e às águias que anteriormente se agrupavam na prontidão singela das aves de rapina, como ficou dito, e hoje têm de ser procuradas na ordem das falconiformes. O progresso científico tem coisas destas e nada há a fazer.
Todavia, atente-se bem no nome dos turacos. Há alguma semelhança com os tucos do império romano, já barbarisado, seguindo a orientação do citado extracto de S. Isidoro. Desconhecemos se as grossas codificações do Imperador Justiniano, na parte arrumada a Oriente, faz qualquer menção aos tucos, enquanto tucos ou aos cuculiformes turacos.
Algumas notas deste som áspero se insinuam também no contexto do nosso império colonial e na arrogância dessa guerra de dicionário. A guerra da fase decadente, está bom de ver. Sim, porque o objectivo desses cuculiformes era provar ao mundo que Portugal não tinha colónias. Mais simples do que fazer a guerra e, porventura mais barato, seria rasgar os dicionários e as enciclopédias. Mas a enaltecida originalidade nacional não chegou tão longe. Os turacos de então limitaram-se a mudar o nome de colónias para províncias ultramarinas. Por isso mesmo não deixa de ser justo que tenham hoje de se agrupar numa ordem com o nome dos cucos. Queiram ou não queiram, pertencem agora à ordem dos cuculiformes, por mais que se disfarcem. Mas não são piores nem melhores do que os cucos que lhes sucederam. No que à capacidade de sobrevivência diz respeito, os cucos que os desalojaram do poleiro, mas lhes mantiveram as prebendas sempre que foi possível disfarçá-las, têm sido bem mais imaginativos e pertinazes do que os seus predecessores. É uma verdade conhecida e indisfarçável. A vida não para, é verdade. Nem o engenho dos cucos. Três décadas e meia depois, verificamos que os antigos cucolídeos não passavam, afinal, de meros aprendizes, quando comparados com os passarões profissionais que abocanharam o ameno rectângulo onde tão bem e tão à-vontade se alimentam, com a patética conivência dos restantes indígenas.
Fizeram da demagogia uma arma certeira, estes cucos. Porque com papas e bolos se enganam os tolos. E enganando os tolos se cevam os cucos. Lascivamente, em proporção directa do definhamento dos recursos dos habitats nacionais. Nos últimos tempos há uma faceta constante no comportamento dos novos cucos, como anteriormente se insinuou sem maldade. Como há muito que os recursos próprios não são suficientes para os seus desmandos, aproveitaram o novo clube, dito europeu, para esmolar a diferença entre o nada que produzem, o pouco que deixam produzir, e o muito que desbaratam ou consomem desleixada e até sumptuosamente. Por isso os cucos esmolam, continuam a esmolar invocando sempre as humilhantes especificidades nacionais. São pobres e mal agradecidos, como era de esperar. Colocando a paróquia à beira do abismo, senão mesmo já em queda livre, nunca reconhecem a sua triste mediocridade. Mas encontram sempre nos outros a culpa para a sua incompetência e voracidade. São cucos. Mas portam-se como cães que mordem a mão do dono que os alimenta.
Importa ter presente que o egoísmo e a agressividade dos jovens cucos é proverbial e até tem dado lugar a interessantes lendas populares. Porque expulsam os irmãos adoptivos do ninho que nem é seu, o povo chega a pensar que os comem. Esta avifagia carecerá de fundamento, mas a verdade é que os jovens cucos têm artes de se fazer alimentar com primazia sobre todos os verdadeiros filhos do ninho e seus hospedeiros.
Há conversões e há disfarces, queremos acreditar. O processo histórico repete-se, aliás, com alguma frequência. Os Judeus e Mouros foram persuadidos a converter-se pelos inquisidores pontifícios e episcopais. D. João III pediu e obteve a benção e a autorização do Papa para que o nosso Santo Ofício fosse tão digno e tão eficiente como o do Padre Tomás de Torquemada. Já então Castela era um importante paradigma, como pode ver-se e para que conste.
Os autos de fé têm acontecido um pouco por todo o lado com diferentes cenários e actores. Ajeita-se a albarda ao gosto dos tempos. Os historiadores que se encarreguem de interpretar e de concatenar os factos. Fazem-no com mestria, de resto, alinhando causas próximas e remotas para todos os gostos.
Em suma, disfarces e conversões são atributos indispensáveis à sobrevivência de todas as minorias. Mas a alma humana é insondável e imprevisível. Alguns cristãos-novos, sabemo-lo bem, nunca renegaram o seu credo, disfarçando-se apenas sob os nomes expressivos de Silvas, Oliveiras, Pereiras, Loureiros, Salgueiros, Laranjeiras, etc. Os nossos cucos pousam, disfarçam-se e voam por entre estes espécimes vegetais e outros. Como, entretanto, a vida se vai “mediatizando” – é o que sói dizer-se – e o cruzamento das espécies é uma irredutível lei da natureza, é natural depararmos hoje com Jardins, Lopes, Barrosos, Costas, Sampaios, Leites, Amarais, Portas ou Janelas, enfim, com qualquer apelido nacional ou mesmo um estrangeirismo chique, e até com curiosas imitações dos filósofos da antiguidade clássica. É justo que se conclua que os cucos não são identificáveis por apelidos familiares e muito menos por nomes próprios.
5. Os turacos pertencem, hoje, à ordem dos cuculiformes por injunção e graça dos novos conhecimentos científicos. Adoptarão, naturalmente, um cantar próximo do cantar dos cucos. A plumagem de origem é indiferente, como vimos. Basta que se disponham a envergar as plumas de conveniência das agremiações cuculídeas bem colocadas.
Mas sempre se dirá que, tal como fazem os cucos, muitos cientistas mudam os nomes às coisas para que tudo fique na mesma. Basta olhar á nossa volta para constatarmos esta mediana evidência. Trata-se ainda de um fenómeno de auto-afirmação e de encantamento generalizado por palavras como mudança, reforma, evolução e outras. Revolução é agora um termo definitivamente excluído do contexto social por muito que custe a alguns cucos, especialistas que foram neste tipo de agitação da avifauna.
Os cucos sabem bem como é importante suscitar periódicamente a ilusão da mudança. O povo, que sempre chamou cucos aos cucos, como ficou demonstrado, gosta de viver essa ilusão, apesar de tudo. Conhece bem os cucos, ou julga conhecê-los. Mas envolve a realidade em velhos provérbios que tanto dizem isto como o contrário. Citemos, a título de exemplo, uma vez mais: com papas e bolos se enganam os tolos, já o utilizámos; cantas bem, mas não me alegras; que bem se canta na Sé. E outros. Muitos outros.
A verdade, nua e crua, é que ninguém pode ficar indiferente ao certíssimo, periódico e mavioso cantar do cuco.
Há quem afirme que este cantar ou chamamento, particularmente intenso no mês de Maio, é só do macho. Mas não deve ser inteiramente verdade. Melhor: hoje isso não pode ser verdade, por mais que a natureza o queira. Mudaremos a natureza, em nome da igualdade. A verdadeé que as fêmeas, vulgares ou hepáticas, mais ou menos coloridas e extravagantes, também cantam, segundo outros autores. Pode não ser um canto original como o dos machos também não é, a maioria das vezes. Pode ser encomendado. Pode ser imitado, porque no canto já não relevam as especificidades nacionais. Ou pode ser imposto pelas observações minuciosas dos directórios dominantes. Mas os cucos fêmeas cantam e movem-se. Movem-se muito, ainda que alguns digam o contrário. Dissemos cucos fêmeas. Mas soa um pouco a reminiscência machista. Seria mais previdente e talvez mais apropriado dizer cucas. Enfim, elas movem-se. Definitivamente. E cantam. Apesar de tudo isto, veja-se bem o absurdo, os cucos não são catalogadas como aves canoras. Cientificamente, entenda-se. Mas, como até a ciência é incoerente, por vezes; uma das espécies de cucos, como ficou dito, até leva o nome de cuculus canorus. Enfim, nada é perfeito neste pobre planeta. Nem sequer nos arredores, provavelmente, se bem que deles ainda saibamos muito pouco.
Falámos de fêmeas e machos, a propósito do canto da nossa ave.
Gente mal intencionada garante que no mundo dos cucos- também aqui, ou sobretudo aqui- o chmado lobby gay tem uma influência determinante. Ou dominante? Que especiosidades. Valha-nos o beato Karl Marx!
Mas que importância terá isso? Mais parada menos parada, menos orgulho ou mais orgulho, mais hepáticas ou menos hepáticos, tudo se recompõe e decompõe nos ovíparos cuculideos, como nos vivíparos hominídeos. A continuação das espécies já pode ser assegurada com barrigas e moelas de aluguer, inseminação artificial, crio-preservação de células estaminais, etc. etc. Afinal, não assistimos a uma sistemática clonagem de cuculídeios?
6. Há 149 espécies conhecidas de cuculiformes, vejam bem. Considerando que só uma pequeníssima parcela dos seres vivos do planeta Terra estão cientificamente classificados, haveremos de convir que os cucos têm sorte, por terem sido objecto de tamanha curiosidade científica. Nada nos garante e outrossim é de crer que outras espécies de cuculiformes venham a ser conhecidas e devidamente classificadas.
No seu impulso migratório, os cucos, como as outras aves de arribação, são determinados por factores genéticos, mas também de idade e de sexo, e pelo contexto ecológico, naturalmente. Os cucos conhecem perfeitamente os ambientes de acolhimento indispensáveis à sua sobrevivência e bem estar. Como se alimentam de insectos e muitas outras iguarias, as direcções migratórias dos cucos, quer primárias, quer secundárias, são transmitidas pelos progenitores, mas também rapidamente apreendidas e perfeitamente assimiladas pelos jovens cucos. Esta realidade é facilmente verificável, empiricamente. Basta consultar a folha oficial, no que a nomeações diz respeito. Ou o nome dos funcionários dos diferentes ministérios. Ou ainda dar alguma atenção aos “jornalistas e quejandos” da nossa cultíssima e isenta comunicação social. Sim, porque para além de estar sempre pronta a debicar as migalhas que os outros cucos premeditadamente lhes fazem chegar ao bico, a televisão e outros meios são hoje importantíssimos caminhos de ascensão social para os jovens cucos.
Vale a pena dizer algo mais sobre a avifauna que pulula na nossa comunicação social. Nem todos são cuculídeos, evidentemente. Mas são o instrumento privilegiado das melhores manobras de diversão. De forma espontânea mas também programada, com alguma autenticidade mas também com muita dissimulação, chegam a denunciar os cucos que lhes alimentam a arte e o engenho. Mas debicam-se permanentemente para promover os cucos na esperança de se promoverem a si próprios. Por isso alguém, com toda a propriedade, já os comparou a putas e clientes que se entrevistam mutuamente. Terá havido algum exagero na figura de estilo, mas é um paradigma comportamental a levar em conta.
7. Os cucos estão em todo o lado, numa palavra. Vejam-se as hierarquias universitárias e correspondentes “dinastias”, empresas da esfera pública, partidos políticos, departamentos da administração, clubes de futebol e por aí fora. Em todo o lado encontramos os cucos e em todo o lado estes se reproduzem sem que haja razão para receios de diminuição demográfica, ao contrário do que sucede com a população da velha Europa e do próprio país, nisto e só nisto se assumindo como verdadeiramente desenvolvido.
Não é que os cucos trabalhem para o futuro. Nem gostam de o fazer, como veremos. Mas protegem bem a sua espécie, por medíocre que ela seja. Basta pensar que os cucos põem para cima de uma dezena de ovos, das mais variadas cores e até malhados, mas sempre de casca muito mais resistentes do que a dos ovos das aves hospedeiras.
A vida está em constante mutação e é imprescindível que os cucos saibam adaptar-se aos novos ventos, às diferentes resistências e a todas as outras condições atmosféricas. E sabem.
Sem menosprezar as classificações científicas, dizem os ornitologistas que uma coisa mais têm os cucos em comum com as aves de rapina, os abelharucos e os noitibós: são solitários durante o curso migratório. Mas há dúvidas sobre a questão, porque há autores que afirmam a pés juntos que o colorido abelharuco migra em grandes grupos, intercalando voos rápidos e acrobáticos com longos e bem conseguidos voos planados. Admitindo, ainda assim, a anterior asserção como verdadeira, então os cucos constituiriam uma excepção importante ao gregarismo da maioria das aves de arribação.
Este traço comum entre os noitibós e os cucos é de grande relevância e, por isso, não podemos deixar de o mencionar. Discute-se a classificação dos noitibós, como se discutem muitas outras coisas, graças a Deus. Para uns, eles pertencem à ordem das caprimulgiformes, ou caprimúlgidas, porque certamente alguma semelhança hão-de ter com as cabras. Se não morfológica, talvez de comportamento. Para outros, os noitibós pertencem à ordem dos fissirrostros, ou bico fendido. Que também pode e talvez deva ser vista como uma mera subordem. Não deve confundir-se a característica com os vira casacas, apesar das reminiscências que, inevitavelmente, o nome desperta.
O que é certo é que estas aves sobrevivem perfeitamente em zonas áridas, mesmo desérticas, obviamente escassas em alimentos e água. Mas alguns são visitantes assíduos da península ibérica, particularmente a sul, devido, talvez, à tão propalada desertificação. Uma das espécies, conhecida por noitibó-de-nuca-vermelha preza muito as noites estivais e quietas do nosso país. Já foi mais numeroso e também mais ruidoso, convencido que esteve, e bem, de dominar inteiramente alguns importantes habitats. Hoje, muito mais cuculizado, utiliza métodos indirectos, armas mais sofisticadas, mas sempre dissimuladas. Numa palavra, apesar das suas aptidões para sobreviver em zonas áridas, o noitibó também prefere, naturalmente, habitats mais ricos e fartos, como ninguém estranhará. Os noitibós permanecem quietos e disfarçados durante o dia, para voarem à noite, de bico aberto, prontos a deglutir qualquer tipo de insecto que lhes surja no caminho, ou melhor, no voo. Mas, tal como sucede com os cucos, têm papo para tudo e não só para insectos. Larvas de todo o tipo, moscas, borboletas, centopeias e até aranhas. Alguns observadores já viram cucos e noitibós engolindo sapos, apesar do asco social que dizem ter do simpático batráquio. O que não passa de conversa fiada, como é bom de ver. Admitem os cientistas que os noitibós disponham de um especial mecanismo para detectar as presas durante a noite. Fazem jus ao nome, numa palavra, visto que noitibó derivará do latim noctivolu.
8. Apesar da biológica solidão migratória que nos levou a falar dos noitibós, a verdade é que alguns dos nossos cucos evoluíram muito, demonstrando uma espantosa capacidade de adaptação e de aprendizagem. Repetimo-nos. Esta característica já foi anteriormente afirmada. Tendo o poleiro farto como destino, e a organização corporativa como passado genético e presente promissor, estes cucos de que agora falamos rapidamente se aperceberam que a migração em grupo poderia trazer grandes vantagens. Só os ornitologistas ainda não verificaram este facto. Vindos de Leste, visto que as migrações de África são vulgares e estão suficientemente observadas, e nunca deixando de olhar convenientemente o ambiente à sua esquerda, mas também à sua direita, estes cucos têm chegado agregados às principais corporações em tempos recentes, porque descobriram que é muito mais fácil voar e ascender desta forma. Uma vez chegados, ao destino final ou intermédio, também a ocupação e a defesa do teritório, normalmente asseguradas pelos machos, como é sobejamente conhecido, tornam-se mais simples desde que se possa contar com o apoio de um pequeno grupo. Muito pouco se exige do grupo. O aplauso, de quando em vez, e fidelidade. Muita fidelidade. Que resulta, aliás, de um óbvio interesse recíproco.
Pouca ou nenhuma homogeneidade existe nos grupos de apoio. Quanto mais heterogéneos, mais fáceis são de controlar. Por isso os cucos preferem grupos amorfos, acríticos, pouco exigentes. Uma vez ocupado o território, o grupo dispersa-se, como convém aos cucos. A dispersão tem vindo a ser programada com grande rigor. Há poleiros, maiores ou menores, que são absolutamente imprescindíveis para controlar os adequados mecanismos e trajectos daqueles fornecimentos a que alguns também chamam corrupção. Basta serem apropriados para fazer desesperar os pobres utentes, quer por acção, quer por omissão. Os cucos hierarquicamente melhor colocados reconhecem, evidentemente, estes actos concertados e os utentes acabam por se habituar, procurando encaminhar as suas pretensões por intermédio da família cuculídea. Se quiserem o assunto resolvido, é claro. A eventual insistência em procedimentos normais, a que alguns também chamariam o exercício regular da cidadania, pode ser, nestes casos, alva como a neve ou negra como a morte, tanto faz.
Periodicamente, e sempre a horas certas, o grupo reúne ao som lindíssimo do cantar do cuco. Nunca é demais lembrar a nostalgia e o efeito sinergético do cantar do cuco, porque em épocas predefinidas a sua profusão bem concertada tem o condão de convencer a avifauna da importância da sua adesão ao chamamento, tornada necessária à legitimação, ao voo e à ocupação do território pelos diferentes grémios cuculídeos.
Como incidentalmente já ficou dito, os nossos cucos distribuem os alimentos de forma perfeitamente hierarquizada. Há sempre alguns distúrbios e alguns contratempos na distribuição das iguarias. Mas, por regra, chega para todos. Os cucos distribuem-se por círculos, concêntricos e discêntricos, sabendo que a quantidade e a qualidade do comer depende da maior ou menor proximidade do poleiro, mas também do grau de coesão que consigam manter. Não desconhecem a técnica do chupa-chupa, nem a do bico adoçado. São necessárias sempre que surge alguma fissura que urge colmatar. Por isso e só por isso é que Roma pode e deve remunerar os traidores. Mas não convém fazer alarde disso. A coesão do grupo ressente-se, pondo em risco o bem estar de todos os cucos. Ora, como é sabido, uma das características morfológicas desta ave é ter um bico grande e até um pouco desproporcionado para o corpo. Já têm surgido dissidências e algumas até com algum relevo. São indisciplinas que se pagam, pelo menos provisoriamente, com um certo afastamento dos poleiros. Mas, mais tarde ou mais cedo as coisas resolvem-se, conhecida que é a grande capacidade negocial de todos os cucos.
8. Característica essencial dos cucos, planetariamente conhecida, é a preguiça e incúria no planeamento do futuro. Não se trata exactamente de um fenómeno de reprodução, como anteriormente se disse, visto que o cuco fêmea põe ovos em abundância, prevenindo vicissitudes inesperadas dos hospedeiros que lhes alimentarão as crias.
As horas de postura não são matinais, mas sempre vespertinas, entre as 15 e as 17 horas. Até aqui impera a preguiça, como se vê. O cuco fêmea ou cuca, como convíramos anteriormente, observa cuidadosamente os hábitos da ave cujo ninho irá utilizar. Aproveita então a sua ausência e impinge-lhe o ovo, muitas vezes já meio incubado no seu próprio corpo, para que o filho tenha vantagens sobre os filhos das aves parasitadas rompendo a casca precocemente. Se pensarmos bem neste fenómeno teremos de convir que é genial.
A reprodução e o planeamento do futuro dos jovens cucos pouco trabalho dá a quem já ocupa o poleiro. Basta mover as influências hierárquicas, ou o tráfego de influências e o nepotismo, como dizem os menos avisados e confessam os próprios cucos, quando desavindos ou desconcertados. O que os cucos não gostam é de trabalhar. Isto é, a maioria esmagadora dos cuculídeos, nem constrói o seu próprio ninho, como é proverbial e até pressuposto natural, sempre que se fala de cucos. Põe os ovos no ninho das outras aves para que estas os incubem, como já ficou dito. Utilizam, em regra, os ninhos de aves de menor porte, como o pisco, o rouxinol, a carriça, a toutinegra, a ferreirinha e até a escrevedeira, de que uma espécie residente é o Trigueirão. Esta ave é robusta, de pescoço curto, malhada em tons de castanho e descuidada porque poisa em descampados e canta com a cabeça virada para trás. Não admira, pois, que seja tão facilmente parasitada pelos cucos.
Por regra, os cucos parasitam os ninhos da mesma ave que os criou, o que é particularmente interessante para um futuro estudo sociológico. O cuco rabilongo, muito comum no Sul da Europa, parasita mais frequentemente os corvos e a pega rabuda. Trata-se de um cuco vaidoso, naturalmente, convencido da importância que teve ou ainda tem. Pelos papéis que desempenha ou já desempenhou trafica ao mais alto nível e com grande facilidade, assim compensando, e bem, os sacrifícios pessoais que amiúde diz ter feito para servir o grupo. A sua retirada está sempre assegurada, assentando-lhe como uma luva os epítetos de consultor, conselheiro, presidente, enfim, tudo o que possa traduzir-se em rendimento sem trabalho. Daqui resultará, seguramente, a sua preferência pelos ninhos dos corvos e das pegas rabudas.
As crias do rabilongo não expulsam tão frequentemente do ninho os seus irmãos adoptivos como as do canoro. Mas o poder atractivo das coloridas mucosas no interior das suas fauces determina que as pegas, pouco atentas ou desinteressadas – nunca se sabe - alimentem estes jovens cucos preferencialmente, levando a que as pequenas pegas e filhos autênticos morram de fome e de inanição. Mães desnaturadas, em suma.
Os cucos aproveitam, pois, o trabalho dos outros. É uma esperteza que joga bem com o seu ar desajeitado quando se desloca no solo, em pequenos saltos, mas sempre bem direccionados. O cuco é ladino como o pardal e dissimulado como nenhuma outra ave, com excepção do noitibó, talvez. Basta lembrar que retira do ninho do hospedeiro um ovo sempre que nele deposita o seu. Para que o hospedeiro não se aperceba da diferença numérica. E só deposita os seus ovos em ninhos onde já haja alguns. Nunca em ninhos vazios. Assim, de uma penada, fica a saber que os ovos vão ser chocados e que o parasitado, provavelmente, nem se aperceberá da artimanha.
Dissemos que dissimulado também é o noitibó. Por necessidades de sobrevivência, naturalmente. A verdade é que esta pobre ave teve um longo passado de aprendizagem no que tange à sobrevivência.
Para o cuco, o futuro dos outros é-lhe absolutamente indiferente, a não ser o do grupo que os suporta, e por razões evidentes. Tal como lhe são indiferentes os conceitos de comunidade, de história e outras ninharias semelhantes. Mas não é raro apregoarem o contrário no seu periódico canto. Só que o conteúdo dessa cantiga é sempre ilusório, como todos bem sabemos e já ficou mencionado. Por masoquismo genético ou irremediável habituação da avifauna residente, temos assistido, nos últimos tempos, a situações de anuência e até de aplauso para com as flagrantes contradições entre o chamamento dos cucos e o seu consentido voo.
Também recentemente, descobriram os cucos que os seus inegáveis dotes de persuasão jogam bem com uma simulada protecção das chamadas minorias. Já aludimos a este fenómeno. Quer sejam étnicas quer sejam de carácter sexual ou outras que rapidamente descobrirão, sempre que isso se mostre útil à necessidade de iludir para conquistar ou para manter os poleiros. Numa palavra, ninguém conte com os cucos para o trabalho de manutenção dos habitats, para a preservação dos recursos ou para a construção de uma comunidade futura, porque está nos seus hábitos deixar essa grande trabalheira para os outros. Dizendo o mesmo de forma popular e algo brejeira, quem vier atrás que feche as luzes do aeroporto! Eis o esquema de vida dos cucos.
9. Mas, como sempre, há algumas excepções no que à construção dos ninhos e ao choco das crias diz respeito. Os mistérios da natureza são insondáveis e insindicáveis, como os desígnios de Deus. Duas destas excepções, - pasme-se – vêm de paragens africanas. Das savanas tropicais. Consta, no entanto, que também existem em abundância na América Latina e designadamente no Brasil. O cuco do Senegal (centropus senegalensis) e o chamada anu-preto (crotophaga ani) formalizam uma espécie de pacto societário e o grupo constrói o ninho comum. O choco é assegurado tanto pelos machos como pelas fêmeas, alternadamente. Quando uma ave pretende ocupar o seu posto no choco, anuncia-o levando uma folha ou uma simples palha no bico, para comunicar a sua intenção ao pássaro funcionalmente precedente.
Estas espécies dispensam, como é bom de ver, o celebérrimo e inteligentíssimo sistema das quotas, que é agora uma expedita novidade no âmbito da já mencionada “protecção das minorias”. Não se compreende muito bem esta obstinação, porque as mulheres são maioritárias entre a espécie homo sapiens, como é sobejamente aceite. Admitimos que as mais recentes exigências científicas e ditames elementares de não discriminação, levem a acrescentar à espécie o termo de mulier sapiens. Bom, mas não podemos esquecer as históricas divisões de tarefas. Más, muito más para as mulheres. Por isso o nosso pobre mundo chegou ao século XXI da era cristã, em estado miserável, como todos reconhecem. Também é verdade que a questão tem a ver, evidentemente, com muitas outras minorias, pelo que não deve ser-se redutor. No entanto, tantas minorias, se bem adicionadas, deixarão, provavelmente, de o ser. Mas são minorias orgulhosas que exibem as suas características em paradas como o orgulho gay, que já mencionámos e outras, muitas outras. Estas minorias são sempre subsidiadas pelos impostos das maiorias. Logo, há todas as razões para a afirmação do referido orgulho. Pudera!
Não esqueçamos o anu-preto e o cuco do Senegal. O anu-preto, de hábitos reprodutores não parasitários, defende agressivamente o respectivo território, não permitindo sequer a intrusão de cucos exteriores ao grupo. Nisto, excluída a superficialidade, nem é muito diferente dos nossos cucos, bem vistas as coisas. Todavia, o anu-preto é uma espécie muito mais graciosa do que as restantes, com uma cauda muito comprida e um voo mais potente e harmonioso. Escusado será dizer que este cuculídeo é de cor preta.
O cuco do Senegal tem um voo directo e forte, mas um ar um tanto desajeitado como todos os outros. Canta ao entardecer. Apesar de ser um canto rouco, semelhante ao esvaziar de uma garrafa, imagine-se a harmonia e a beleza quando compostas pelos belíssimos ocasos tropicais. O período de nidificação corresponde aos períodos húmidos ou época das chuvas, nesses lugares africanos: de Maio a Outubro no Senegal e até Fevereiro, mais a sul. O ninho é volumoso, esférico e muito confortável porque é forrado a folhas. A entrada é lateral para evitar a chuva, naturalmente. Trata-se de um cuco indubitavelmente dotado de muito engenho, como se constata.
10. O periódico e bem sintonizado cantar do cuco alcançou um lugar histórico na dificílima e filosófica função de medir o tempo a que, afinal, tudo o mais se resume. Falamos agora, naturalmente, do celebérrimo relógio de cuco que parece ter sido inventado em 1730 pelo artesão montanhês Franz Anton Ketterer, no Estado de Daden-Wurtemberg que faz fronteira com a França, a Suíça e a Áustria. Num minúsculo povoado, de seu nome Schonwald. É o lugar da Floresta Negra, onde, obviamente, também há cucos cujo canto, simples mas exemplarmente regular, terá inspirado o montanhês transalpino. Claro que o tempo foi sempre uma referência filosófica e existencial do homem. Por que é curto, muito curto, e é extenso, tão extenso, que ninguém consegue suar o tempo necessário para alcançar o conceito de eternidade. Por isso, fiquemo-nos pela sua medição, como paradigma de naturais e legítimas preocupações. Desde os relógios de sol mais simples, como uma vara perpendicular ao eixo da terra, passando pelas também célebres clepsidras e ampulhetas, de líquidos e areias, que ainda hoje são interessantes objectos decorativos. A propósito das ampulhetas, parece que já então eram usadas nos tribunais romanos para determinar o tempo que os advogados consumiam aos juízes, à assistência e aos contribuintes romanos, evidentemente. Por isso tinham o seu tempo cronometrado. E desse tempo nos ficaram as expressões aquam dare e aquam perdere, consoante o tempo que era concedido ou ainda restava para as doutas lucubrações jurídicas. Muita água se deu e muita água se tem perdido desde então. Talvez por isso a água seja hoje um recurso tão escasso. Enfim, nada é absolutamente novo ou imutável à face da terra. Nem os seus movimentos de rotação e translação que determinam, naturalmente, as migrações dos cucos e as efemérides em virtude das quais gozamos uns feriados de quando em vez. Por isso, até o efeito pisoeléctrico, cuja descoberta deu origem aos relógios de quartzo, bem como os posteriores padrões de Césio e Maser de hidrogénio evoluíram agora para o padrão das pulsações das estrelas de neutrões “pulsar”, as quais, por inacreditável que pareça, são ainda mais regulares do que o cantar do cuco.
Pois é. Mas o notável relógio de cuco parece ter vindo das margens da Floresta Negra tendo sido rapidamente adoptado em toda a Europa e em todo o mundo, sempre por indefectível influência europeia, como ninguém duvidará.
Não muito longe dessas lindíssimas paisagens da Europa Central, assim comummente dita, exercitam os nossos actuais cucos constantes folguedos e movimentos migratórios, designadamente entre Estrasburgo e Bruxelas e destes centros poderosíssimos para toda a periferia deste continente que, segundo a mitologia, terá sido uma belíssima donzela transportada e amada por Zeus, sob a forma de touro, à sombra de um frondoso plátano que conservou para sempre verdes as suas folhas.
Mas nem a mitologia exime os nossos cucos da necessidade de medir o tempo. Agora com sofisticados relógios de ouro comprados nos benditos free shopings espalhados pela terra que dizem ter sido filha dos latifundiários Agenor e Telefaassa, visto que era com o seu rebanho que o referido touro fingia pastar. É que apesar dos privilégios, plenamente justificados, de resto, os cucos sempre têm necessidade de apanhar aviões para os mencionados destinos e para outros, em nobilíssima representação dos povos europeus e, por conseguinte, à custa do erário público.
Claro está que alguns cucos papudos, a que já fizemos uma pequena referência, também não desdenham utilizar meios aéreos mais cómodos, porque não sujeitos a horários, ainda que com prejuízo dos serviços a que esses meios estão usualmente afectos. Mas isto só sucede em estado de necessidade, evidentemente, determinado ou resultante de ingentes tarefas de representação pública. Mas nem por isso podem dispensar os sofisticados relógios de pulso cujas marcas©, por si só, definem bem um merecido status cuculídeo.
Tudo isso é certo. Contudo, porque nos faltam conhecimentos e engenho para uma mais pormenorizada descrição da riquíssima indústria actual da relojoaria, voltaremos por breves instantes aos relógios de cuco para dizer que, apesar das inúmeras e bem sucedidas imitações conseguidas durante dois séculos, os mais famosos ainda à venda nas casas de antiguidades, continuam a ser os da Floresta Negra. O relógio de cuco, entenda-se, não é apenas um objecto decorativo ou uma antiguidade. É certo que os designers são agora mais atraídos pelas formas rectilíneas ou puras, como gostam de lhes chamar. O barroco e o romantismo, que inspiraram os mais famosos artesãos dos relógios de cuco, caíram em desuso, depois de anos e anos a dar autenticidade decorativa a qualquer sala de estar prezadamente burguesa. Mas ainda hoje é possível ver e ouvir os detalhados mecanismos que, em cada quarto de hora, impulsionam a abertura da portinhola do mostrador, exibindo o pequeno cuco e fazendo ouvir a reprodução do seu característico cantar.
Segundo um bem sucedido conhecedor destas e de outras antiguidades, um autêntico Floresta Negra deve ter um mostrador grande e, necessariamente, em madeira trabalhada. As figuras nele esculpidas, folhas, aves e veados, as mais das vezes, são sempre muito perfeitas. Os pesos, frequentemente sob a forma de pinhas, têm correntes reforçadas, visto estarmos perante artesanato germânico. Cuidado, pois, com as imitações. Porque a máquina e as engrenagens de um autêntico Floresta Negra são fundidas com perfeição e numeradas. Nem todo o mérito inventivo pertence ao artesão Franz Ketterer, evidentemente. Todo o conhecimento e toda a indústria é resultado de muitas e variadas contribuições. Os relógios de cuco não teriam sido o que foram e o que são sem a invenção das rodas dentadas, por Arquimedes, no longínquo ano de 287 a. c.! E temos para nós que o isosincronismo das oscilações do pêndulo também deve ser havido como essencial na produção dos relógios de cuco e em muitos outros artefactos. Ora, tal descoberta deve-se, inevitavelmente, a Galileu Galilei, em finais do século XI. Mas ninguém poderá retirar ao artesão de Shonwald a atitude observadora da regularidade do canto da maravilhosa ave que nos ocupa e o engenho inventivo do seu aproveitamento para a utilíssima medição do tempo. Por isso mesmo, poderemos dizer que Ketterer contribuiu decisivamente para colocar o cuco no âmago da história da ciência e da própria filosofia. O que a ave bem merece, convenhamos.
O texto já tem uns anos. Aguarda a 2ª parte: as marionetas, necessariamente. Mas o texto tem de ser actualizado. Os Cucos tornaram-se despudoradamente atrevidos, como é do conhecimento de todos. A actualização, por razões práticas, será mais fácil com a publicação desta 1ª versão como início de um blog. É o que espero. Farei o possível.
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